quinta-feira, 19 de maio de 2011

Rudolf Nureyev dança "L'Après-midi d'un Faune", de Debussy

Poema de Stéphane Mallarmé, "A tarde de um fauno", ilustrado por Édouard Manet, que inspirou a música homônima de Claude Debussy.


Nureyev é um prodígio que tornou a dança uma arte difícil mas possível de ser conquistada. Podemos ver neste vídeo uma disciplina artística rigorosa, que consegue misturar o primitivo e o refinado audaciosamente!


domingo, 8 de maio de 2011

Brasil Soul Power: história do funk e do soul music no Brasil

Este vídeo narra a ascensão da alma e do funk no Brasil a partir de gravações de Tim Maia e Banda Black Rio às danças acionada por DJs como Big Boy e Mr. Funky Santos. Mais entrevistas com figuras importantes da cena pode ser encontrada em www.BrazilSoulPower.com. Este vídeo foi produzido por Thomas Fawcett que bloga no TheCornerMusic.com. (Tradução)

domingo, 1 de maio de 2011

Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!


José Régio 

Roberto Piva



Roberto Piva nasceu na cidade de São Paulo em 1937, onde sempre viveu. Desde os anos 1960, é figura marcante na paisagem poética paulistana, através da publicação de poemas em vários meios e da participação pessoal em inúmeros eventos. Piva é um caso particular na poesia brasileira contemporânea. Essa particularidade é a soma de vários aspectos. Não em ordem de importância, há o fato de ele poetizar a cidade de São Paulo, quando a cidade é a grande ausente da poesia paulistana desde o modernismo. Além disso, sua obra surge à mesma época do construtivismo concretista, do qual, de certa forma, Piva é o grande antípoda – ainda mais que a poesia “marginal” carioca, cuja maior representante é Ana Cristina César. A poesia do século XX descende diretamente do simbolismo. É de sua liberdade individualista, desafeita às formas clássicas, que advém tanto as vertentes construtivistas (como o futurismo) quanto as subjetivistas (como o surrealismo). Nos anos 1950, a primeira vertente originaria o concretismo, enquanto a segunda tanto a poesia “marginal” no Brasil quanto a poesia beat nos EUA. Piva, em suma, é um poeta moderno cuja ascendência inclui o simbolismo, a poesia de Whitman, o movimento beat, o jazz, a contracultura dos anos 1970 e os movimentos pelos direitos civis, além da citada temática urbana. Deve-se acrescentar ainda sua relação com a chamada etnopoesia – ligando Piva ao multiculturalismo – através da figura-síntese do xamã, recorrente em sua fase recente. Numa poesia de resto bem menos conhecida do que deveria – é o homossexualismo, e mais genericamente o sexualismo, em que, apenas para ficar na língua portuguesa – deixando então de lado figuras seminais como Kaváfis –, Piva é herdeiro direto do grande e hoje grandemente desconhecido contemporâneo de Fernando Pessoa que foi António Botto.Tudo isso é mais que suficiente para falar da importância e da particularidade (uma alimentando a outra) da poesia de Piva, restando, porém, referir o prazer estético de uma poesia que traz a marca – hoje rara – da oralidade. Como diz Alcir Pécora  – num texto ensaístico que renova a recepção crítica da obra de Piva: “Quando ele a lê, sua poesia se evidencia como verdadeira presença, [...] uma presença física, tensa, temível e arrebatadora, [...] como [se aí] encontrasse sua melhor condição, o ponto forte em que foi nascida, a mais justa freqüência de sua vibração”.

"Provido de uma tal concepção dinâmica da Realidade Poética & da "alucinação das palavras" em termos de Rimbaud, eu atingi  a Poesia visando coroar de Amores em primeiro lugar a Existência. Contra a inibição de consciência da Poesia Oficial Brasileira a serviço do instinto de morte (repressão), minha poesia sempre consistiu num verdadeiro ATO SEXUAL, isto é, uma AGRESSÃO cujo propósito é a mais íntima das uniões.  Acho interessante, neste momento, para melhor configurar o problema da Criação Poética, destacar uma linhas de El arco y la lira de Octavio Paz: "Um estilo artístico é algo vivo, uma contínua invenção dentro de certa direção. Nunca imposta de fora, nascida do impulso criador & das tendências profundas da sociedade, essa direção é até certo ponto imprevisível, como o é o crescimento de ramos de uma árvore. Em troca, o estilo oficial é a negação da espontaneidade criadora (...)"  ROBERTO PIVA
"E também não deve ser negligenciado o fato de que, para Piva, a relação fluída entre a vida e a literatura sempre foi um princípio. Chegou a criar alguns slogans provocadores para expressar sua visão sobre o assunto. "Dante deve ser relido em uma sauna cercado por adolescentes", dispara em um depoimento de 1982. Outro slogan, citado em sua Autobiografia, e que apareceu em diversas entrevistas suas: "Não acredito em poeta experimental que não tenha vida experimental".  DANILO MONTEIRO



Integrou a Antologia dos novíssimos (São Paulo: Massao Ohno, 1961) e 26 poetas hoje (org. Heloísa Buarque de Holanda, Rio: Labor, 1976, 1.a edição / Rio: Aeroplano, 1998, 2.a edição). Publicou os livros de poemas Paranóia (São Paulo: Massao Ohno, 1963 / São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000, 2a. edição), Piazzas (São Paulo: Massao Ohno, 1964, 1a. edição / São Paulo: Kairós, 1980, 2a. edição), Abra os olhos e diga ah! (São Paulo: Mass ao Ohno, 1975), Coxas (São Paulo: Feira de Poesia, 1979), 20 poemas com brócoli (São Paulo: Massao Ohno/ Roswitha Kempf, 1981), Quizumba (São Paulo: Global, 1983), Antologia poética (Porto Alegre: L&PM, 1985) e Ciclones (São Paulo: Nankin, 1997). Todos esses livros foram reunidos em três volumes publicados pela Editora Globo: Um estrangeiro na legião, Mala na mão & asas pretas e o recém-lançado Estranhos sinais de Saturno.


“A reduzida bibliografia crítica sobre Roberto Piva, apesar dos seus 8 livros publicados desde Paranóia, de 1963, até Ciclones, de 1997, o caracteriza, em um paradoxo, como poeta ao mesmo tempo muito conhecido, porém pouco divulgado e insuficientemente estudado.” (Cláudio Willer)
“O último livro de Roberto Piva – Ciclones – tem todo o vigor da adolescência. [...] O autor parece identificar poesia, beleza, marginalidade e homossexualismo numa mesma construção, de desenho gracioso, de ímpeto dionisíaco, de realização brusca, liberta, ousada”. (Marcelo Coelho)
“Ninguém foi mais rápido no gatilho do que Roberto Piva: no início dos anos 60, ele escreveu Paranóia, um dos retratos poéticos definitivos da metrópole paulistana que emergia e de sua paisagem de morfina, seus arranha-céus de carniça, seus arcanjos de enxofre.” (Jotabê Medeiros)


 Fonte de pesquisa: http://jornaltelescopio.blogspot.com

Ode a Fernando Pessoa

O rádio toca Stravinsky para homens surdos e eu recomponho na minha imaginação
a tua vida triste passada em Lisboa.
Ó Mestre da plenitude da Vida cavalgada em Emoções,
Eu e meus amigos te saudamos!
Onde estarás sentindo agora?
Eu te chamo do meio da multidão com minha voz arrebatada,
A ti, que és também Caeiro, Reis, Tu-mesmo, mas é como Campos que vou
saudar-te, e sei que não ficarás sentido por isso.
Quero oferecer-te o palpitar dos meus dias e noites,
A ti, que escutaste tudo quanto se passou no universo,
Grande Aventureiro do Desconhecido, o canto que me ensinaste foi de libertação.
Quando leio teus poemas, alastra-se pela minh'alma dentro um comichão de
saudade da Grande Vida,
Da Grande Vida batida de sol dos trópicos,
Da Grande Vida de aventuras marítimas salpicada de crimes,
Da grande vida dos piratas, Césares do Mar Antigo.
Teus poemas são gritos alegras de Posse,
Vibração nascida com o Mundo, diálogos contínuos com a Morte,
Amor feito a força com toda Terra.

Sempre levo teus poemas na alma e todos os meus amigos fazem o mesmo.
Sei que não sofres fisicamente pelos que estão doentes de Saudade, mas de
Madrugada; quando exaustos nos sentamos nas praças, Tu estás conosco, eu
sei disso, e te respiramos na brisa.
Quero que venhas compartilhar conosco as orgias da meia-noite, queremos ser
para ti mais do que para o resto do mundo.
Fernando Pessoa, Grande Mestre, em que direção aponta tua loucura esta noite?
Que paisagens são estas?
Quem são estes descabelados com gestos de bailarinos?

Vamos, o subúrbio da cidade espera nossa aventura,
As meninas já abandonaram o sono das famílias,
Adolescentes iletrados nos esperam nos parques.
Vamos com o vento nas folhagens, pelos planetas, cavalgando vaga-lumes cegos até o Infinito.
Nós, tenebrosos vagabundos de São Paulo, te ofertamos em turíbulo para uma
bacanal em espuma e fúria.
Quero violar todas as superfícies e todos os homens da superfície, Vamos viver para além da burguesia triste que domina meu país alegremente
Antropófago.
Todos os desconhecidos se aproximam de nós.
Ah, vamos girar juntos pela cidade, não importa o que faças ou quem sejas, eu te
abraço, vamos!
Alimentar o resto da vida com uma hora de loucura, mandar à merda todos os deveres, chutar os padres quando passarmos por eles nas ruas, amar os
pederastas pelo simples prazer de traí-los depois,
Amar livremente mulheres, adolescentes, desobedecer integralmente uma ordem
por cumprir, numa orgia insaciável e insaciada de todos os propósitos-
Sombra.
Em mim e em Ti todos os ritmos da alma humana, todos os risos, todos os olhares,
todos os passos, os crimes, as fugas, Todos os êxtases sentidos de uma vez,
Todas as vidas vividas num minuto Completo e Eterno,
Eu e Tu, Toda a Vida!
Fernando, vamos ler Kierkegaard e Nietzsche no Jardim Trianon pela manhã,
enquanto as crianças brincam na gangorra ao lado.
Vamos percorrer as vielas do centro aos domingos quando toda a gente decente
dorme, e só adolescentes bêbados e putas encontram-se na noite.
Tu, todas as crianças vivazes e sonolentas,
Carícia obscena que o rapazito de olheiras fez ao companheiro de classe e o
professor não vê;
Tu, o Ampliado, latitude-longitude, Portugal África Brasil Angola Lisboa São
Paulo e o resto do mundo,
Abraçado com Sá-Carneiro pela Rua do Ouro acima, de mãos dadas com Mário de Andrade no Largo do Arouche.
Tu, o rumor dos planaltos, tumulto do tráfego na hora do ¿rush¿, repique dos
sinos de São Bento, hora tristonha do entardecer visto do Viaduto do Chá,
Digo em sussurro teus poemas ao ouvido do Brasil, adolescente moreno empinando papagaios na América.
Vamos ver a luz da Aurora chispando nas janelas dos edifícios, escorrendo pelas
águas do Amazonas, batendo em chapa na caatinga nordestina, debruçando
no Corcovado,
Ouçamos a bossa-nova deitados na palma da mão do Cristo e a batucada vinda
diretamente do coração do morro.
Tu, a selvagem inocência nos beijos dos que se amam,
Tu o desengajado, o repentino, o livre.
Agora, vem comigo ao Bar, e beberemos de tudo nunca passando pela caixa,
Vamos ao Brás beber vinho e comer pizza no Lucas, para depois vomitarmos
tudo de cima da ponte,
Vem comigo, eu te mostrarei tudo: o Largo do Arouche à tarde, o Jardim da Luz
pela manhã, veremos os bondes gingando nos trilhos da Avenida, assaltaremos o Fasano, iremos ver ¿as luzes do Cambuci pelas noites de crime¿,
onde está a menina-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio,
Não te levarei ao Paissandu para não acordarmos o sexo do Mário de Andrade
(ai de nós se ele desperta!),
Mas vamos respirar a Noite do alto da Serra do Mar: quero ver as estrelas refletidas
em teus olhos.
Sobre as crianças que dormem, tuas palavras dormem; eu deles me aproximo e
dou-lhes um beijo familiar na face direita.
Teu canto para mim foi música de redenção,
Para tudo e todos a recíproca atração de Alma e Corpo.
Doce intermediário entre nós e a minha maneira predileta de pecar.
Descartes tomando banho-maria, penso, logo minto, na cidade futura, industrial
e inútil.
Mundo, fruto amadurecido em meus braços arqueados de te embalar,
Resumirei para Ti a minha história:
Venho aos trambolhões pelos séculos,
Encarno todos os fora da lei e todos os desajustados,
Não existe um gangster juvenil preso por roubo e nenhum louco sexual que eu
não acompanhe para ser julgado e condenado;
Desconheço exame de consciência, nunca tive remorsos, sou como um lobo
dissonante nas lonjuras de Deus.
Os que me amam dançam nas sepulturas.
Da vidraça aberta olho as estrelas disseminadas no céu; onde estás, Mestre Fernando?
Foste levar a desobediência aos aplicados meninos do Jardim América?
Dás um lírio para quem fugir de casa?
Grande indisciplinador, é verdade?

Vamos ao norte amar as coisas divinamente rudes.
Vamos lá, Fernando, dançar maxixe na Bahia e beber cerveja até cair com um
baque surdo no centro da Cidade Baixa.
Sabes que há mais vida num beco da Bahia ou num morro carioca do que em
toda São Paulo?
São Paulo, cidade minha, até quando serás o convento do Brasil?
Até teus comunistas são mais puritanos do que padres.
Pardos burocratas de São Paulo, vamos fugir para as praias?
Ó cidade das sempiternas mesmices, quando te racharás ao meio?
Quero cuspir no olho do teu Governador e queimar os troncos medrosos da floresta
humana.
Ó Faculdade de Direito, antro de cavalgaduras eloqüentes da masturbação transferida!
Ó mocidade sufocada nas Igrejas, vamos ao ar puro das manhãs de setembro!
Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?
Fornalha do meu Tédio transbordando até o Espasmo.
Horda de bugres galopando a minha raiva!
Sei que não há horizontes para a minha inquietação sem nexo,
Não me limitem, mercadores!
Quero estar livre no meio do Dilúvio!
Quero beber todos os delírios e todas as loucuras, mais profundamente que
qualquer Deus!
Põe-te daqui para fora, policiamento familiar da alma dos fortes: eu quero ser
como um raio para vós!
Violência sincopada de todos os "boxeurs"!
Brasileira do Chiado em dias de porre de absinto.
Arcabouço de todas as náuseas da vida levada em carícias de Infinito.
Tudo dói na tua alma, Nando, tudo te penetra, e eu sinto contigo o íntimo tédio
de tudo.
Realizarei todos os teus poemas, imaginando como eu seria feliz se pudesse estar
contigo e ser tua Sombra.

Um estrangeiro na legião, Roberto Piva (1962)

terça-feira, 26 de abril de 2011

Passagem Das Horas

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente
Yat-iô--ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ... Ghi-...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar...
Tempestades em torno ao Guardaful...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?

Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
Só estou bem quando ouço música, e nem então.
Jardins do século dezoito antes de 89,
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?

Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.

Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das idéias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
A direção constantemente abandonada do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, o mãe, a nossa perdida vida...

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.

Por isso sê para mim materna, ó noite tranqüila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
Tu que não és uma coisa, rim lugar, uma essência, uma vida,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, o noite, sobre a minha fronte...
'Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,
(No mesmo abraço comovido)
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —
Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.

Beijo na boca todas as prostitutas,
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é a razão de ser da minha vida.

Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-rne,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.

Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!

(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,
Os seus half-holidays inesperados...
Mary, eu sou infeliz...
Freddie, eu sou infeliz...
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis,
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —
Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo,
Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,
Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!

Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim...
Meu coração tribunal, meu coração mercado,
Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
Estalagem, calabouço número qualquer cousa
(Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló,
Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
Meu coração postigo,
Meu coração encomenda,
Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice,
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.

Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
Com as cabeças femininas coiffées de lin
E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda,
E a fita entalada com o fechar da gaveta,
Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la...

Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,
Definitivamente para todo o resto do Universo,
E que os carros me passem por cima.)

Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas ás emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida!

Obter tudo por suficiência divina —
As vésperas, os consentimentos, os avisos,
As cousas belas da vida —
O talento, a virtude, a impunidade,
A tendência para acompanhar os outros a casa,
A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar já para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus.

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
Que a dor real das crianças em quem batem
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
Eu, enfim, que sou um diálogo continuo,
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
E faz pena saber que há vida que viver amanhã.
Eu, enfim, literalmente eu,
E eu metaforicamente também,
Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso
As leis irrepreensíveis da Vida,
Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
Sem personalidade com valor declarado,
Eu, o investigador solene das coisas fúteis,
Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso,
E que acho que não faz mal não ligar importâricia à pátria
Porqtie não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz
Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,

Como uma frase escrita por um doente no livroda rapariga que encontrou no terraço,
Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea,
Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos.
Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
Coada através das árvores do jardim público,
Eu, o que os espera a todos em casa,
Eu, o que eles encontram na rua,
Eu, o que eles não sabem de si próprios,
Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
A cicatriz do sargento mal encarado,
O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
O sacana do José que prometeu vir e não veio
E a gente tinha uma partida para lhe fazer...
Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem,
E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de ttido isto,
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa...
Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim,
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
O baú das iniciais gastas,
A entonação das vozes que nunca ouviremos mais -
Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
A Brígida prima da minha tia,
O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas,
E a vida era guerra civil a todas as esquinas...
Vive le mélodrame oú Margot a pleuré!
Caem as folhas secas no chão irregularmente,
Mas o fato é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
há só um caminho para a vida, que é a vida...

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,
E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.
Não me subordino senão por atavisnio,
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.

Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades
Acessíveis à imaginação
Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,
Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,
Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.

No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa,
Vou ao lado dela sem ela saber.
No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado,
Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá.
Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me,
Não há modo de eu não estar em toda a parte.
O meu privilégio é tudo
(Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma).

Assisto a tudo e definitivamente.
Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim,
Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira,
Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso,
Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta
Que não seja para mim por uma galantaria deposta.

Fui educado pela Imaginação,
Viajei pela mão dela sempre,
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,
E todos os dias têm essa janela por diante,
E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta,
Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo,
Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,
Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido
Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes.
Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca,
Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida,
Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,
E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.

Ho-ho-ho-ho-ho!...
Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo
Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado,
Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
He-la-ho-ho... Helahoho...

Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...
A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe
As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel,
E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,
Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,
Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha
De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...
Ho ----

Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!
Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!
Ave, salve, viva a grande máquina universo!
Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis!
Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, idéias abstratas,
A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,
A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso,
O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,
Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves,
Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,
Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor

Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel,
Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade,
Máquina universal movida por correias de todos os momentos!

Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
Infinito...
Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,
Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,
E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar
Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...

Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,
Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna,
Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente
Rola...

Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra,
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,
Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,
Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato,
Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas,
A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo...

Ah, não estar parado nem a andar,
Não estar deitado nem de pé,
Nem acordado nem a dormir,
Nem aqui nem noutro ponto qualquer,
Resol,,,er a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas...

Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho

Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,
Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,
Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas...

Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques,
Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,
Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,
Numa velocidade crescente, insistente, violenta,
Hup-la hup-la hup-la hup-la...

Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas,
Cavalgada energética por dentro de todas as energias,
Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde,
Clarim claro da manhã ao fundo
Do semicírculo frio do horizonte,
Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas
Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis...

Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa,
Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade...

Carro que chia limpidamente, vapor que apita,
Guindaste que começa a girar no meu ouvido,
Tosse seca, nova do que sai de casa,
Leve arrepio matutino na alegria de viver,
Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como,
Costureira fadada para pior que a manhã que sente,
Operário tísico desfeito para feliz nesta hora
Inevitavelmente vital,
Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,
Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas
Abrem aqu; e ali os olhos cortinados a branco...

Toda a madrugada é uma colina que oscila,

(...)

Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras
E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge

Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens —
Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada,
Do rodopio parado da minha retentiva seca,
Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.

Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua,
Aros caixotes trolley loja rua i,itrines saia olhos
Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
Passeio lojistas "perdão" rua
Rua a passear por mim a passear pela rua por mim
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua

Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.
Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá.
Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio!
Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!
Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te
Por todos os precipícios abaixo
E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!

À moi, todos os objetos projéteis!
À moi, todos os objetos direções!
À moi, todos os objetos invisíveis de velozes!
Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!
Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso!
A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!

Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias,
Velocidade entra por todas as idéias dentro,
Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,
Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,
Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes,
Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado
Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas,
Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares,
Senhor supremo da hora européia, metálico a cio.
Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!

(...)

Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
Dec4ina dentro de mim o sol no alto do céu.
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?
Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata,
Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
Calcar, calcar, calcar até não sentir.
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.

Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,
Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,
Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago,
Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu.
Helahoho-o-o-o-o-o-o-o...

Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação...


Álvaro de Campos



































sexta-feira, 22 de abril de 2011

Eduardo Andreozzi


Küss mich, Schnucki-Putzi
(Yes Sir! Thats my Baby)
Tanzorchester (Eduardo Andreozzi)
Derby 551-B/2193-at (first recorded for the German Grammophone)
Berlin, c.05.1926
"Eduardo Andreozzi was born 1892 in Brazil. He studied music in Rio 1917 - 1919. He toured Europe in the 1920´s and 30´s. He played the violin and sax.
In the 40´s he was involved in Latin Jazz. He made some recordings for Odeon and the Grammophone in Berlin with his Jazzband. He died 1979."
***
"Eduardo Andreozzi (1892-1979) é um nome que merece pesquisa mais aprofundada. Em um capítulo, dedicado ao violino no jazz, do livro The Cambridge Companion to the violin, o autor Marx Harrison coloca Andreozzi, violinista, como um exemplo da tradição, iniciada nos anos do ragtime, em que o violinista era o lider da banda de jazz (Harrison, 1922: 251). Andreozzi, músico desconhecido no Brasil, liderou sua banda a partir de 1919, tendo gravado pela Odeon até 1920. Em seguida, excursionou na Europa com sucesso, tendo atuado mais esporadicamente após a II Grande Gerra. O The New Grove Dictionary of jazz refere-se a Andreozzi também como saxofonista e não violinista. Eugene Chadbourne levanta a hipótese de que a reputação do músico como pioneiro parece ser devida mais à introdução de repertório estrangeiro do que a sua atuação como instrumentista."
 ***

Biography

"Eduardo Andreozzi is a kind of long lost link in the woven chain mail connecting jazz and Latin music. By the '40s it was clear that there would be such a thing as Latin jazz; by the '80s it was well proven that a kind of gelatin could result from the combination as well. The jazz forensic lab has come up with Latin clues on the New Orleans scene, but what about a man who, also in the early '20s, changed the repertoire of a Rio de Janeiro dance orchestra from Latin music to jazz? Andreozzi studied in Rio from 1917 through 1919, but obviously had American jazz sides stashed in his notebooks, and a radio serving up something other than samba. The Odeon label prolifically recorded his developing experiments between 1919 and 1924, sides that someone might just find if a major earthquake churns up everything that was ever lost in the country of Brazil. The bandleader's reputation as a pioneer was based completely on this radical introduction of essentially foreign repertoire, since he did not perform as a soloist and have some kind of instrumental virtuosity to fall back on in order to drive the message home. From the mid-'20s Andreozzi began to bolster his reputation outside his homeland. He toured Europe off an on for more than a decade, collaborating with bandleader Gregor Keleklian and cutting sides for Grammophon in Berlin. Trumpeter Mickey Diamond's jewels of inspiration were on display throughout tracks such as "Big Bad Bill." The band even had its own kazoo player, the shining Sydney Sterling. The names of these sidemen lead to speculation that the Brazilian bandleader was somehow involved in the trading of precious stones as well as making music. He was much less active on the music scene following the Second World War.  (Eugene Chadbourne, All Music Guide)."


Fonte de pesquisa
http://www.youtube.com/ 
http://www.uc.cl/historia/iaspm/baires/articulos/rodriguessilva.pdf
http://www.billboard.com/artist/eduardo-andreozzi

***

É pra mim, uma grande honra homenagear este ilustre músico. Porque além de contribuir para seu merecedor reconhecimento, também me orgulha o fato deste, ser avô materno de uma pessoa muito especial pra mim, Khalil Andreozzi Naime.